A vida, às vezes, nos passa em um piscar de olhos. Hoje eu
tive essa certeza ao encontrar com uma pessoa, que por anos foi a fonte de minha inspiração e a raiz da minha dor. Em
um simples piscar de olhos eu retornei à minha
infância perdida. Foi como se um túnel do tempo me reportasse ao ano de 1978.
Contra qualquer vontade
minha, eu havia vestido uma fantasia de tirolês para ir a um baile de carnaval
com minha mãe que estava vestida de Cleópatra.
Quando chegamos, o salão estava
lotado. Era nítida a felicidade das pessoas que curtiam as marchinhas. Ao fundo do salão,
decorado com muito glamour, dava para notar
um grande palco com uma banda que tocava as marchinhas, mas o que chamava mesmo a atenção era a piscina
gigante, cercada por uma grade e vigiada por vários homens vestido de camisa
vermelha com uma cruz branca no peito.
Todos demonstravam uma
alegria que não se via em outros dias. Eu me perguntava por que nos outros dias
tudo não era tão colorido como naquele salão? Por que as pessoas não andavam
todas sorrindo como naquele momento? Foi então que minha mãe deu um jeito de me
tirar de perto.
- Meu filho veja como todos
se divertem, vai brincar que a mãe tem alguns
assuntos para tratar com as amigas delas.
Foi então que, com toda a delicadeza, dona Paula Regina me
empurrou para a fila de crianças que pulavam ao
som de “Corta o cabelo dele”.
- Ricardinho,
meu filho, vai brincar que o assunto aqui não é para criança. Onde já se
viu uma criança de quatro anos que não pula carnaval, não dança e muito menos entra
na corda com o povo.
Somente depois de muitos
anos eu descobri o que minha mãe quis dizer com entrar na corda com o povo.
Indo contra qualquer
vontade de minha mãe eu permanecia sentando no chão, juntando confete e
serpentina em montinhos separados e em um instante quase que mágico eu avistei
uma odalisca que fazia o mesmo que eu naquele momento. O olhar triste daquela
menina contagiava muito mais que as marchinhas
do salão.
Algo muito estranho
parecia acontecer. Aquela menina de olhos azuis que se destacavam em sua pele
branca como a neve, estava triste como eu. Perdida e desolada naquele
gigantesco salão. A menina estava atônita e de alguma
forma me faria esquecer que mais uma vez eu havia vestido aquela horrível roupa
de tirolês. Por sorte minha mãe foi apresentada à mãe daquela garotinha.
- Oi Paula, faz tempo que não te vejo, mas parece que você
ainda não se desfez dessa fantasia de Cleópatra.
- Dona Vera, como sempre com um ótimo humor. Aliás, sua fantasia de Baco, é
isso mesmo? Está perfeita!
- Vingativa como sempre Paula! Eu estou vestida de Athena,
deusa da sabedoria, e por falar em sabedoria como vai o pequeno Ricardo?
- Como sempre de mau humor,
acredita que não queria vir novamente, este ano ao baile!
- Ah! Ricardinho dá um abraço aqui na titia
Vera.
- Oi tia, cadê o tio Álvaro?
- Olha o tio teve que ir ao
Ministério da Justiça hoje e não pode vir, mas a tia tem certeza que você vai
adorar brincar com a Andréia.
- Nossa!
que menina linda Vera, quem é ela? Perguntou
minha mãe.
- Andréia é filha de
Renata, uma das empregas do condomínio onde eu moro.
Naquele dia deixamos a
tristeza de lado e pulamos no meio do salão,
dançamos e, aonde íamos, estávamos sempre de
mãos dadas. Parecia que nos conhecíamos há anos e que éramos super íntimos, mas
não trocamos muitas palavras.
Depois de quatro anos consecutivos
vivenciando as mesmas cenas, dançando, pulando,
sorrindo e falando muito pouco, esse parecia ser
diferente
O salão de Baile estava com as
mesmas decorações dos anos anteriores, mas com
algumas mudanças. Entre os vários balões coloridos
agora existiam máscaras, a maioria delas com
feições de tristezas e algumas com faixas pintas de verde e amarelo.
Eu já estava ansioso,
parado em uma pilastra, olhando aflito
para a porta de entrada. Fazia como um pirata com uma luneta postada sobre os
olhos à busca de um lugar seco que pudesse me repousar. Passara o ano todo
pensando como faria aquela pergunta a ela! Foi neste
exato momento que a avistei, a mais bela chinesa que eu já havia visto em São
Paulo. Aproximei-me.
- Pensei que você não viria
este ano!
- Desculpa,
minha mãe teve que fazer faxina até tarde hoje, quase que não venho.
- Posso te fazer uma
pergunta?
- Sim, pode!
- Por
que não te vejo em lugar algum, somente
aqui nos bailes de carnaval?
- É que eu moro no interior
com minha avó e só venho para cá nesta época.
Ter a companhia de Andréia
era algo que não conseguia explicar. Era como se eu conhecesse um mundo de faz
de conta onde meus pais e seus amigos não existiam, e eu não tinha que ouvir
coisas terríveis que eles planejavam fazer para mudar o país como diziam. Mas
aqueles momentos duravam pouco instantes diante de uma imensidão de horas que
separavam aquele dia de outro ano.
No ano seguinte eu havia
mudado um pouco meu comportamento, passara o ano todo na companhia de alguns filhos
de militares que moravam no meu prédio, e isso influenciou um pouco a minha vida. Até minha fantasia era de soldado. Passei quase o baile todo junto com meus amigos atormentando as crianças menores, tentando colocar confetes em suas bocas. Isso
viria a mudar quando avistei Andréia triste, tentando
passar despercebida, escondendo-se nas golas de
sua fantasia de imperadora, na expectativa de que eu e meus amigos não a víssemos, enquanto sua mãe a incentiva a ir brincar.
Foi então que eu a surpreendi, pegando-a pelo braço,
ela olhou nos meus olhos, eu escutava de
fundo a canção “Bandeira Branca”. Ela me abraçou
e me deu um beijo no rosto e sussurrou no meu ouvido:
- Até o carnaval do ano que
vem. E logo depois saiu correndo em direção à porta.
No ano seguinte eu já
estava mais maduro. Havia completado meus treze anos, e infelizmente Andréia
não estava presente a minha festa. Mas como
havia sido a menos de uma semana eu poderia comemorar com ela no baile de
carnaval. Aquele foi um dos bailes mais marcantes da minha infância, pela
primeira vez nossas fantasias se completavam. Eu vestia uma roupa de toureiro e
ela de bailarina espanhola. Sempre que podíamos nos beijávamos sem que nossas
mães pudessem ver. Quase na hora de nos despedirmos eu pedi uma lembrança
daquele momento.
- Ano passado você me deu
um beijo de despedida. Eu passei o ano todo pensando nele,
este ano o que você vai me dar para não me esquecer deste momento?
- Minha avó diz que as
palavras marcam nossas almas, que nos fazem pensar sobre o momento vivido e que, às vezes, elas nos sopram como brisas. Então sempre
que quiser lembrar-se de mim, deixe que o ar ventilado por este leque beije seu
rosto na minha ausência.
Mais um ano havia passado
e eu estava angustiado esperando por aquele momento, Andréia não saíra de meus pensamentos este ano todo.
Eu comecei a ter um pouco
mais de cuidado com minha aparência, fazia tudo para que nosso encontro deste
ano fosse algo novo, queria que ela se emocionasse ao me ver. Mudei o penteado,
passei a praticar natação e meu corpo também começou a mudar, já não era mais
aquele garotinho magrinho, com os cabelos escorridos.
Decidi então deixar as
fantasias de criança para trás e fui ao baile de havaiano.
O salão este ano parecia
bem mais alegre e colorido, as mascarás com
feições tristes haviam sido queimadas com as “diretas já”, o povo não se sentia
mais preso, podia se notar que as mães usavam cada vez menos panos para se
cobrirem.
No entanto, Andréia simplesmente não apareceu naquele ano. Desolado e com o coração vazio, acabei tomando o
primeiro porre de minha vida. Aproveitei que um amigo havia levado bebida
escondida e afoguei todas minhas angustias. Naquele dia fui embora carregado.
Depois
do bolo tomado no ano anterior, decidi que não iria mais frequentar, o baile
das crianças, com quinze anos nas costas já
estava na hora de crescer. Mesmo sabendo que não iria ver Andréia, eu tomara a decisão
de ir ao baile dos adultos.
De
repente meus olhos encontraram uma menina com
corpo de mulher, suas curvas traziam uma sensualidade que nunca havia visto até
aquele momento, seus cabelos jogados sobre os ombros escondiam as marcas de
biquíni e seu sorriso reluzia alegria.
- Oi Ricardo, como você
está diferente? Parece que cresceu!
Acanhado e muito sem graça
respondi:
- Digo o mesmo de você
Andréia. O que aconteceu que você não apareceu ano passado? E por que mudou de
baile? Será que você acredita que cresceu?
- É que minha avó faleceu
justo no carnaval, acredita?
Foi então que se
aproximaram de nós três rapazes fortes e duas meninas muito sensuais.
- Oi gente, esse é o Ricardinho, um amigo de infância.
- Ricardinho mesmo, olha
como o menininho é franzino, vai ver não tomou o todinho que a mamãe preparou.
Naquele momento todos
riram de mim, sem graça e,
um pouco chateado com a Andréia, fui
atrás de Marcelão, aquele meu amigo que conseguia driblar a segurança e entrar
com bebidas. Seria a solução para aquele momento em
que um vazio tomava conta do meu peito. Porém, bem
diferente do ano anterior, este me fazia ver que tinha jogado
fora anos de minha vida, pensando em
Andréia.
Fiquei a noite toda
encostado em uma pilastra vendo Andréia circular abraçada com vários rapazes,
inclusive o engraçadinho que me parecia não ter cérebro.
Meio tonto e já insatisfeito
de ver aquelas cenas, comecei a caminhar pelo
meio do salão rumo à porta de saída. E neste momento ao som de “Bandeira Branca” senti meu corpo ser arrastado para
um canto do salão, era Andréia me puxando. Com seus braços sobre meus ombros
ela me sussurrou:
- Assim, não vale você
cresceu mais do que eu.
Depois daquele dia nunca
mais havia visto Andréia, desde os 15 anos até
hoje.
Estava eu no saguão do
aeroporto quando ouço:
- Ricardinho, é você?
- Desculpa quem é você mesmo?
- Sim é você mesmo Ricardo!
Desligado como sempre, sou eu Andréia lembra, do clube do Ipiranga.
Juro que se ela não
tivesse se apresentado nunca iria reconhecê-la, sua curvas quase perfeitas
haviam dado lugar a um corpo de formas mais avantajadas e seus olhos azuis, antes delineados pela sua pele branca como a neve, se escondiam em um semblante maltratado pelo
tempo.
- É você mesmo minha
dançarina espanhola. Quanto tempo...
Paramos
para conversar em uma lanchonete do Aeroporto e colocamos toda a conversa em dia, ela me explicou que tentou me
localizar, mas não sabia nem meu sobrenome. Estava
casada e que naquele momento estava de viagem para o interior,
onde iria ver sua mãe. Eu confidenciei quase tudo de mim: contei que não havia mais frequentado o
clube do Ipiranga, pois meu pai havia sido transferido para Banco do Brasil do
Rio de Janeiro, local em
que trabalho hoje, que me casei e me separei e que estava indo visitar
meus filhos, mas não contei que – naquele dia em
que ela me abraçou e deixou que sua cabeça se debruçasse sobre meu
ombro, eu senti a brisa do verdadeiro amor soprar em minha face e
descobri que amores são eternos. – E que eu
seria capaz de fazer tudo para ser feliz ao lado dela. E que mesmo hoje ela
ainda continua linda, pois o amor verdadeiro esta na essência das pessoas e não
nas formas físicas.