quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Entre Olhares


A vida, às vezes, nos passa em um piscar de olhos. Hoje eu tive essa certeza ao encontrar com uma pessoa, que por anos foi a fonte de minha inspiração e a raiz da minha dor. Em um simples piscar de olhos eu retornei à minha infância perdida. Foi como se um túnel do tempo me reportasse ao ano de 1978.
Contra qualquer vontade minha, eu havia vestido uma fantasia de tirolês para ir a um baile de carnaval com minha mãe que estava vestida de Cleópatra.
Quando chegamos, o salão estava lotado. Era nítida a felicidade das pessoas que curtiam as marchinhas. Ao fundo do salão, decorado com muito glamour, dava para notar um grande palco com uma banda que tocava as marchinhas, mas o que chamava mesmo a atenção era a piscina gigante, cercada por uma grade e vigiada por vários homens vestido de camisa vermelha com uma cruz branca no peito.
Todos demonstravam uma alegria que não se via em outros dias. Eu me perguntava por que nos outros dias tudo não era tão colorido como naquele salão? Por que as pessoas não andavam todas sorrindo como naquele momento? Foi então que minha mãe deu um jeito de me tirar de perto.
- Meu filho veja como todos se divertem, vai brincar que a mãe tem alguns assuntos para tratar com as amigas delas.
Foi então que, com toda a delicadeza, dona Paula Regina me empurrou para a fila de crianças que pulavam ao som de “Corta o cabelo dele”.
- Ricardinho, meu filho, vai brincar que o assunto aqui não é para criança. Onde já se viu uma criança de quatro anos que não pula carnaval, não dança e muito menos entra na corda com o povo.
Somente depois de muitos anos eu descobri o que minha mãe quis dizer com entrar na corda com o povo.
Indo contra qualquer vontade de minha mãe eu permanecia sentando no chão, juntando confete e serpentina em montinhos separados e em um instante quase que mágico eu avistei uma odalisca que fazia o mesmo que eu naquele momento. O olhar triste daquela menina contagiava muito mais que as marchinhas do salão.
Algo muito estranho parecia acontecer. Aquela menina de olhos azuis que se destacavam em sua pele branca como a neve, estava triste como eu. Perdida e desolada naquele gigantesco salão. A menina estava atônita e de alguma forma me faria esquecer que mais uma vez eu havia vestido aquela horrível roupa de tirolês. Por sorte minha mãe foi apresentada à mãe daquela garotinha.
- Oi Paula, faz tempo que não te vejo, mas parece que você ainda não se desfez dessa fantasia de Cleópatra.
- Dona Vera, como sempre com um ótimo humor. Aliás, sua fantasia de Baco, é isso mesmo? Está perfeita!
- Vingativa como sempre Paula! Eu estou vestida de Athena, deusa da sabedoria, e por falar em sabedoria como vai o pequeno Ricardo?
- Como sempre de mau humor, acredita que não queria vir novamente, este ano ao baile!
- Ah! Ricardinho dá um abraço aqui na titia Vera.
- Oi tia, cadê o tio Álvaro?
-  Olha o tio teve que ir ao Ministério da Justiça hoje e não pode vir, mas a tia tem certeza que você vai adorar brincar com a Andréia.
- Nossa! que menina linda Vera, quem é ela? Perguntou minha mãe.
- Andréia é filha de Renata, uma das empregas do condomínio onde eu moro.
Naquele dia deixamos a tristeza de lado e pulamos no meio do salão, dançamos e, aonde íamos, estávamos sempre de mãos dadas. Parecia que nos conhecíamos há anos e que éramos super íntimos, mas não trocamos muitas palavras.
Depois de quatro anos consecutivos vivenciando as mesmas cenas, dançando, pulando, sorrindo e falando muito pouco, esse parecia ser diferente
O salão de Baile estava com as mesmas decorações dos anos anteriores, mas com algumas mudanças. Entre os vários balões coloridos agora existiam máscaras, a maioria delas com feições de tristezas e algumas com faixas pintas de verde e amarelo.
 Eu já estava ansioso, parado em uma pilastra, olhando aflito para a porta de entrada. Fazia como um pirata com uma luneta postada sobre os olhos à busca de um lugar seco que pudesse me repousar. Passara o ano todo pensando como faria aquela pergunta a ela! Foi neste exato momento que a avistei, a mais bela chinesa que eu já havia visto em São Paulo. Aproximei-me.
- Pensei que você não viria este ano!
- Desculpa, minha mãe teve que fazer faxina até tarde hoje, quase que não venho.
- Posso te fazer uma pergunta?
- Sim, pode!
- Por que não te vejo em lugar algum, somente aqui nos bailes de carnaval?
- É que eu moro no interior com minha avó e só venho para cá nesta época.
Ter a companhia de Andréia era algo que não conseguia explicar. Era como se eu conhecesse um mundo de faz de conta onde meus pais e seus amigos não existiam, e eu não tinha que ouvir coisas terríveis que eles planejavam fazer para mudar o país como diziam. Mas aqueles momentos duravam pouco instantes diante de uma imensidão de horas que separavam aquele dia de outro ano. 
No ano seguinte eu havia mudado um pouco meu comportamento, passara o ano todo na companhia de alguns filhos de militares que moravam no meu prédio, e isso influenciou um pouco a minha vida. Até minha fantasia era de soldado. Passei quase o baile todo junto com meus amigos atormentando as crianças menores, tentando colocar confetes em suas bocas. Isso viria a mudar quando avistei Andréia triste, tentando passar despercebida, escondendo-se nas golas de sua fantasia de imperadora, na expectativa de que eu e meus amigos não a víssemos, enquanto sua mãe a incentiva a ir brincar.
Foi então que eu a surpreendi, pegando-a pelo braço, ela olhou nos meus olhos, eu escutava de fundo a canção “Bandeira Branca”. Ela me abraçou e me deu um beijo no rosto e sussurrou no meu ouvido:
Até o carnaval do ano que vem. E logo depois saiu correndo em direção à porta.
No ano seguinte eu já estava mais maduro. Havia completado meus treze anos, e infelizmente Andréia não estava presente a minha festa. Mas como havia sido a menos de uma semana eu poderia comemorar com ela no baile de carnaval. Aquele foi um dos bailes mais marcantes da minha infância, pela primeira vez nossas fantasias se completavam. Eu vestia uma roupa de toureiro e ela de bailarina espanhola. Sempre que podíamos nos beijávamos sem que nossas mães pudessem ver. Quase na hora de nos despedirmos eu pedi uma lembrança daquele momento.
- Ano passado você me deu um beijo de despedida. Eu passei o ano todo pensando nele, este ano o que você vai me dar para não me esquecer deste momento?
- Minha avó diz que as palavras marcam nossas almas, que nos fazem pensar sobre o momento vivido e que, às vezes, elas nos sopram como brisas. Então sempre que quiser lembrar-se de mim, deixe que o ar ventilado por este leque beije seu rosto na minha ausência.
Mais um ano havia passado e eu estava angustiado esperando por aquele momento, Andréia não saíra de meus pensamentos este ano todo.
Eu comecei a ter um pouco mais de cuidado com minha aparência, fazia tudo para que nosso encontro deste ano fosse algo novo, queria que ela se emocionasse ao me ver. Mudei o penteado, passei a praticar natação e meu corpo também começou a mudar, já não era mais aquele garotinho magrinho, com os cabelos escorridos.
Decidi então deixar as fantasias de criança para trás e fui ao baile de havaiano.
O salão este ano parecia bem mais alegre e colorido, as mascarás com feições tristes haviam sido queimadas com as “diretas já”, o povo não se sentia mais preso, podia se notar que as mães usavam cada vez menos panos para se cobrirem.
No entanto, Andréia simplesmente não apareceu naquele ano. Desolado e com o coração vazio, acabei tomando o primeiro porre de minha vida. Aproveitei que um amigo havia levado bebida escondida e afoguei todas minhas angustias. Naquele dia fui embora carregado.
           Depois do bolo tomado no ano anterior, decidi que não iria mais frequentar, o baile das crianças, com quinze anos nas costas já estava na hora de crescer. Mesmo sabendo que não iria ver Andréia, eu tomara a decisão de ir ao baile dos adultos.
         De repente meus olhos encontraram uma menina com corpo de mulher, suas curvas traziam uma sensualidade que nunca havia visto até aquele momento, seus cabelos jogados sobre os ombros escondiam as marcas de biquíni e seu sorriso reluzia alegria.
- Oi Ricardo, como você está diferente? Parece que cresceu!
Acanhado e muito sem graça respondi:
- Digo o mesmo de você Andréia. O que aconteceu que você não apareceu ano passado? E por que mudou de baile? Será que você acredita que cresceu?
- É que minha avó faleceu justo no carnaval, acredita?
Foi então que se aproximaram de nós três rapazes fortes e duas meninas muito sensuais.
- Oi gente, esse é o Ricardinho, um amigo de infância.
- Ricardinho mesmo, olha como o menininho é franzino, vai ver não tomou o todinho que a mamãe preparou.
Naquele momento todos riram de mim, sem graça e, um pouco chateado com a Andréia, fui atrás de Marcelão, aquele meu amigo que conseguia driblar a segurança e entrar com bebidas. Seria a solução para aquele momento em que um vazio tomava conta do meu peito. Porém, bem diferente do ano anterior, este me fazia ver que tinha jogado fora anos de minha vida, pensando em Andréia.
Fiquei a noite toda encostado em uma pilastra vendo Andréia circular abraçada com vários rapazes, inclusive o engraçadinho que me parecia não ter cérebro.
Meio tonto e já insatisfeito de ver aquelas cenas, comecei a caminhar pelo meio do salão rumo à porta de saída. E neste momento ao som de “Bandeira Branca” senti meu corpo ser arrastado para um canto do salão, era Andréia me puxando. Com seus braços sobre meus ombros ela me sussurrou:
- Assim, não vale você cresceu mais do que eu.
Depois daquele dia nunca mais havia visto Andréia, desde os 15 anos até hoje.
Estava eu no saguão do aeroporto quando ouço:
- Ricardinho, é você?
Desculpa quem é você mesmo?
- Sim é você mesmo Ricardo! Desligado como sempre, sou eu Andréia lembra, do clube do Ipiranga.
Juro que se ela não tivesse se apresentado nunca iria reconhecê-la, sua curvas quase perfeitas haviam dado lugar a um corpo de formas mais avantajadas e seus olhos azuis, antes delineados pela sua pele branca como a neve, se escondiam em um semblante maltratado pelo tempo.
- É você mesmo minha dançarina espanhola. Quanto tempo...
           Paramos para conversar em uma lanchonete do Aeroporto e colocamos toda a conversa em dia, ela me explicou que tentou me localizar, mas não sabia nem meu sobrenome. Estava casada e que naquele momento estava de viagem para o interior, onde iria ver sua mãe. Eu confidenciei quase tudo de mim: contei que não havia mais frequentado o clube do Ipiranga, pois meu pai havia sido transferido para Banco do Brasil do Rio de Janeiro, local em que trabalho hoje, que me casei e me separei e que estava indo visitar meus filhos, mas não contei que – naquele dia em que ela me abraçou e deixou que sua cabeça se debruçasse sobre meu ombro, eu senti a brisa do verdadeiro amor soprar em minha face e descobri que amores são eternos. – E que eu seria capaz de fazer tudo para ser feliz ao lado dela. E que mesmo hoje ela ainda continua linda, pois o amor verdadeiro esta na essência das pessoas e não nas formas físicas.