sexta-feira, 23 de outubro de 2009

O julgamento


O amanhecer daquele dia chegara mais cedo do que dos outros cinquenta anos em que vivi sob aquela luz cinza irradiada pelo sol. As nuvens brancas não tinham mais o mesmo formato hostil de outros dias. Notei que a viagem deveria ser definitiva. Finalmente, eu poderia desfrutar do pouco tempo que ainda me restava. Foi quando fechei os olhos e uma lágrima incomum correu dos meus olhos. Seria de remorso ou felicidade? Será que Thanatos ouviu minhas preces?

Em um piscar de olhos me veio toda aquela jornada que haveria de cumprir naquele momento. Minha consciência martelava pela melhor forma de vingança: recusar-me a pagar a viagem ou contribuir e deixá-lo ir a julgamento o mais rápido possível.
Naquele momento lembrei-me de toda uma tradição que descrevia um rio, no qual as águas eram completamente negras e densas, coberto por uma névoa avermelhada, em que corpos de pessoas desesperadas boiavam. Às margens desse mesmo rio sempre havia muitas pessoas à espera de um barqueiro ganancioso e que demorava a chegar. Não me custaria muito ajudar pagando a passagem só de ida, mesmo porque há pouco ele acabara de deixar para trás toda sua esperança. Seria melhor contribuir com as moedas de prata e deixá-lo se perder naquele gigantesco lugar sem perspectiva de crescimento, para que pagasse por todos os anos em que vivi sob as rédeas duras desta sociedade machista e humilhante.

Mais uma lágrima caíra de meus olhos e naquele exato momento tive a certeza de que ele adentrara a primeira prisão e seu julgamento demoraria a findar-se uma vez que várias poderiam ser as prisões, vales ou fossos que caberiam a ele. Minha torcida era por uma pena que durasse uma eternidade; a companhia rápida de Cérbero, depois de uma longa caminhada sob aquela chuva, que desgastava a pele deixando um cheiro de cadáver em decomposição no ar, seria pouco; sua viagem deveria ser muito mais cansativa, para que seu sangue se renovasse dia após dia, para abastecer a gigantesca cachoeira vermelha existente naquele lugar. Sua viagem infinita deveria ser mais longa, o juiz deveria encaminhá-lo talvez para o primeiro vale, onde ele se banharia em um lago criado por todas as lágrimas de sangue que derramei por sua causa, ou melhor, o juiz seria mais justo se lhe apresentasse o nono fosso onde as pessoas são retalhadas e seus sangues cobrem as paredes negras tingidas por uma camada de sangue seco.

Ao abrir os olhos tive a certeza de que não sonhava, o rabecão realmente estava ali e seus restos mortais eram tratados como ele merecia: um monte de nada que vai para lugar algum, pagar por coisa nenhuma em um lugar onde a lei dos mais fortes, que ele sempre insistira em colocar em prática, será vivida de forma aterrorizante na eternidade do esquecimento. Era a certeza de que ele chegara primeiro que eu ao mundo dos mortos.